O servidor ressentido

Coluna Democracia e Política

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Foto: pixabay

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Quando o servidor público não consegue vitória em sua pauta de reivindicações, quando vê que seus desejos de melhores condições de trabalho sucumbirem as iniciativas truculentas dos administradores de plantão, estão dadas as condições prévias para a sua transformação em servidor ressentido. Ele não é apenas um derrotado na sua pauta de reivindicações, ele se sente vítima de processos que não pode interferir e isto lhe causa profunda dor. Nele se instala então o sentimento do ressentimento, sua voz crítica que se dirige ao Outro, e, para Maria Rita Kehl, em seu clássico “Ressentimento”, o problema todo está aí, pois neste momento o servidor público “desincube-se moralmente de qualquer responsabilidade pela situação que o ofendeu”(p.19).

Quer dizer, refletir sobre o ressentimento no serviço público, sobre o sentimento vitimização por um mal sofrido em uma administração, não pode ser feita pelo servidor público sem refletir também sobre a parcela de culpa que ele teve no mal que o afligiu, por não ter lutado um pouco mais por algo que dizia a respeito a seu desejo.

Vivemos um processo galopante de expansão da ideologia neoliberal por todos os lados, inclusive no campo do serviço público. O Estado, ou pelo menos seus representantes, sem a menor cerimônia encarnam os valores da ideologia neoliberal, a que propõe o Estado Mínimo e a redução dos direitos dos servidores públicos.

Quando tem seus direitos retirados, servidores públicos queixam-se o tempo todo, seja publicando artigos, realizando reuniões, confabulando nos grupos de Whatsapp, xingando seus administradores pelos corredores, eles não lutam para recuperar aquilo que perderam – sua liberdade de horários com a implantação do relógio ponto, seu direito à venda de licença-prêmio por obstaculização da Direção, etc, etc: eles lutam para que o Outro reconheça o mal que ele fez com suas medidas administrativas, com sua reforma no campo dos recursos humanos.

Agora não existe mais nenhuma reparação possível, só existe, como afirma Kehl, uma única possibilidade: vingança. Ele deseja que o responsável por tudo isso não se reeleja nas próximas eleições, ele quer que tenha sucesso as medidas administrativas de seu Sindicato feitas junto ao Ministério Público e a Justiça para sua punição. A cada vitória na Justiça contra seu seu algoz ele vibra.

O problema é que esta atitude, para a psicanálise, é uma espécie de covardia: o servidor público cedeu de seu desejo, deixou que controlassem seu horário, deixou que lhe retirassem o direito de estudar e depois vem cobrar da administração o seu desejo roubado. Mas a análise psicanalítica é limitada pela exclusão da questão do poder, já que o servidor público nunca esteve no lugar de deliberar, não é seu o poder de legislar, como é o de um Presidente ou os administradores de plantão e daí a possibilidade de vitimização por atitudes totalitárias pelos responsáveis pela administração pública.

O servidor público ressentido é alguém que ainda quer resistir, quer resistir contra a aceitação do seu desejo recusado – de querer estudar, de querer liberdade de horário – mas quer também resistir a responsabilidade que teve em ver seu desejo negado. Por isso tem mágoa, a ferida aberta que ainda dói em sua alma; por isso tem raiva, que busca somente a vingança transposta pelas mais diversas estratégias: escrever a exaustão, ironizar ou a pior, retirar de seu algoz o que lhe seria mais precioso, a dedicação ao trabalho. Na psicanálise, a mágoa só tem sua solução no perdão: mas como perdoar quando o servidor é a vítima permanente de uma injustiça nas condições de trabalho?

O servidor magoado é incapaz de continuar a fazer bem o seu serviço. É a forma de seu luto, ele  precisa de tempo para elaboração,  precisa de tempo para retomar o prazer que o trabalho na instituição pública provoca. Porquê? Por que todo o desejo que antes era concentrado pelo servidor na realização de suas funções passa a ser  concentrado na cicatrização da ferida aberta que sangra:  servidores vítimas de reformas administrativas tem uma ferida em sua alma de lenta cicatrização.

Ele a elabora: chega de carro voando às pressas para mostrar a todos, com o risco de vida a seus colegas, de que aquele ponto o afeta, de que mexe com sua alma, com seus hábitos, com sua família; ele registra fotograficamente cada registro no ponto para lembrá-lo da sua exploração;  ele passa a ser vigilante em relação ao seu administrador, reproduzido as estratégias de policiamento de seu algoz, etc, etc. Kehl lembra o samba de Cartola: ”fácil demais fui presa/servi de pasto/em sua mesa”.

Mas ainda em Cartola está em curso outra coisa, trata-se da sedução que vítima o sujeito amoroso; no caso dos servidores públicos, não porque é  uma situação de exercício de poder e não de sedução. Por isso, e já afirmei antes, administradores que produzem suas reformas com base na sedução e não no poder tem mais sucesso e menos danos produzem em suas corporações.

Que fazer? O lamento sem fim é uma espécie de gozo do ressentido. Mas é seu modo de denunciar a tudo e a todos os males que sofreu. É sua maneira de dizer que não aceita o direito dado ao poder de alterar sua vida, mas que talvez, não tenha usado suficiente energia para denunciá-lo, ou não tenha usado os caminhos melhores para afirmar seu desejo de vida nas organizações. Ele precisa então refletir sobre isso, o servidor individualmente ou seu sindicato, criticando e analisando seja lá quem promoveu as reformas administrativas que rejeita. A verdade é uma:  ele nunca estará quites com sua administração porque alguém tirou proveito de sua condição de servidor público.

Mas é preciso lembrar,  como afirma Montaigne no capítulo Arrependimento de sua obra Ensaios, que  “o arrependimento não se aplica as coisas que estão acima de nossas forças” . Quer dizer, o servidor passa a ter sentimentos confusos, seu ressentimento traduz-se por arrependimento de não ter feito algo a mais, mas o que é possível fazer quando somente a submissão é possível?

É preciso, portanto, sair da condição de ressentido, eis a questão. Por que, se imaginar o Outro como o Mal, é porque vê a si mesmo como o bom, o perfeito. Não é o caso, o servidor não soube reagir num momento de perigo (Walter Benjamim) e portanto, precisa aprender a lutar mais. Em instituições onde há lideranças, onde são eleitos a exaustão líderes nem sempre atentos as necessidades de seus servidores, não pode continuar jogando o jogo que demanda ao Outro que não seja forte. E ele o é por sua posição de poder. Por isso Kehl retoma Nietszche, pois para este autor, o mundo não se divide entre os bons e os maus, mas entre os fortes e fracos. Só existem aqueles que lutam por seu desejo “torna-te quem tu és” (Nietszche).

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Numa situação de abuso de poder, é preciso reiteração da memória. As medidas autoritárias o tornaram doente e sua doença funcional não o faz mais esquecer. Não pode esquecer o agravo de que foi vitima (Kehl), não pode esquecer o sentimento de que foi “passado para trás” na corrida pela conquista de direitos. Ocorre sempre na sociedade, porque não iria ocorrer no serviço público? A todo instante, surgem perdedores. E se há perdedores, há ganhadores. A todo instante, grupos sociais são colocados à margem da sociedade por uma sociedade exploratória, por capitalistas e financistas que jamais pensam nas repercussões sociais de seus atos.

Mas quem é vítima e quem é co-responsável por seu fracasso? Por isso, o ressentimento termina por ser o novo componente da cultura do serviço público: o que produz a iniciativa do governo do Estado do Rio Grande do Sul ao cortar direitos de seus servidores? O que produz a politica de pessoal do Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre quando retira até o direto de estudar do servidor? E porque aceitamos tudo isso tão passivamente? Há aí, com certeza, séculos de uma cultura política paternalista que espera que seus líderes “resolvam” os problemas da população e portanto, do serviço público. E isso nem sempre ocorre.

A população deveria ser consciente de que os problemas dos servidores públicos lhes dizem respeito: de que se um governante agrava e não cria condições de trabalho no serviço público, isto é um problema. O ressentimento de servidores é um indicador no serviço público: mais servidores ressentidos, políticas públicas de menor qualidade. Não são somente os servidores as vítimas da má politica, é também a sociedade.

Há um prejuízo no servidor público ressentido: ele envenena sua alma com as aspirações de vingança, sede de justiça e agir em nome da verdade. Isto porque aceitar a sujeição não é uma opção. Mas ele não pode é ficar isolado, como o personagem Paulo Honório, da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ressentido por ser incapaz de reagir as mudanças ao seu redor. Suas reações não podem assumir o caráter compulsivo, é preciso viver a vida.

A razão é a dificuldade de evitar o sentimento persecutório que o ressentimento envolve, de perseguir a origem de sua dor. As queixas contra administradores de plantão tem sua razão de ser quando baseadas em argumentos, e não na condenação moral, de que os Wattsapp tornaram-se exemplares. Não, não basta xingar, tem de argumentar. O que argumentar? Não basta argumentar, é preciso ações concretas. O que fazer? Uma política de divulgação junto a sociedade, uma ação educativa para servidores, enfim.

O servidor ressentido necessita rever sua posição. De que reconhece sua posição de vítima, mas de que está prestes a inaugurar um Outro projeto. Que projeto seria este? Poderia ser negociar com o próximo gestor, divulgar para a sociedade sua condição de vitimização, escrever e publicar seus relatos com vistas a construção de um novo espaço do servidor público ou alertar as demais categorias sociais da possibilidade de reformas administrativas em que sejam vitimas.

Ele pode associar, por exemplo, a introdução do ponto eletrônico ao nascimento de neuroses no serviço público: não são as características do neurótico viver permanentemente angustiado, sentir-se incapaz de lutar contra o que origina seus sintomas, sentir sua personalidade afetada de modo a ser incapaz de reestrutura-la? Tudo isso não está sendo experimentado por servidores que sofrem mudanças? Não seriam as mudanças na organização pública desencadeadoras de sintomas neuróticos em seus servidores? É nesse sentido propositivo, de discussão de uma nova forma de diagnósticos dos problemas, de uma nova agenda do serviço público, da problematizadora das consequências das más gestões, da colocação do problema do adoecimento do serviço público, que reagimos ao ressentimento em vista a reorganização psicológica dos servidores, buscando reestruturar o tempo de vida.

Precisamos pensar o contexto das reformas no serviço público como no integrante psicopolítico (Han) das estratégias de desorganização neoliberal das instituições.

 

downloadJorge Barcellos é Articulista do Estado de Direito, responsável pela coluna Democracia e Política – historiador, Mestre e Doutor em Educação pela UFRGS. É autor de “Educação e Poder Legislativo” (Aedos Editora, 2014), coautor de “Brasil: Crise de um projeto de nação” (Evangraf,2015). Menção Honrosa do Prêmio José Reis de Divulgação Científica do CNPQ. Escreve para Estado de Direito semanalmente.

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